domingo, 23 de dezembro de 2007

É fim de ano

Varandas enfeitadas e iluminadas anunciam a chegada do natal. Shoppings lotados de gente feliz carregando sacolas de compras. Papais Noel de aluguel atraem fregueses nas portas das lojas. Crianças escolhem nas vitrines os presentes mais caros para desespero dos pais. Listas do carteiro, lixeiro, porteiro, jornaleiro e até do entregador de pizza. Em boa hora chega o décimo terceiro e ajuda a bancar a festa.
Bares e restaurantes repletos de pessoas confraternizando. Amigo oculto e troca de CDs pirata, agendas, águas de colônia de farmácia e inutilidades para o lar. Hora de abrir presentes e corações para reatar velhas amizades, de renovar planos para o ano que vai iniciar, mesmo sabendo que dificilmente irão se realizar. Planos de voltar a estudar, pagar as dívidas, poupar dinheiro, viajar, trocar de carro e fazer aquela plástica a muito sonhada.
Noite Feliz. Casa cheia de gente com roupa nova. Árvore de natal piscando e crianças correndo em volta ansiosas para abrir os presentes. Parentes distantes trocam informações sobre quem nasceu e quem morreu; quem casou e quem se separou. Mesa farta com fila para se servir de peru, pernil, presunto, bacalhau e farofa. Faz calor no natal tropical, uma cervejinha gelada cai melhor do que um tinto encorpado. A tia velha e gorda se empapuça de pernil, rabanadas, nozes e castanhas. Que se dane a dieta, pode ser seu último natal. Algazarra na distribuição de presentes. Fim de festa com papel de presente espalhado pelo chão e crianças dormindo nos colos dos pais.
Uma semana de trégua e a festa recomeça. Especial do Roberto Carlos, reveillon do Faustão e flores para Iemanjá. Queima de fogos em Copacabana e árvore flutuante na Lagoa. Meia noite. Espocam champanhes e planos para o ano novo. Bebedeira geral. Gente de branco pelas ruas se abraçando e saudando o ano que acabou de começar.
Ressaca logo no primeiro dia. Aos poucos o sonho se desfaz e a vida volta ao normal. IPTU, IPVA, cartão de crédito para pagar sem o décimo terceiro para ajudar. No ano que vem tudo vai mudar.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O porre que mudou a história do Brasil


Brasília, Palácio do Planalto, Gabinete da Presidência.
24 de agosto de 1961, seis da tarde — Abri uma garrafa e me servi uma dose generosa. Estavam todos contra mim, as forças armadas, os políticos da oposição e até os do meu próprio partido. Nem parecia que eu havia sido eleito presidente a menos de um ano e varrido com minha vassoura aquele marechal arrogante. Eles esqueceram rápido. O presidente americano havia apresentado um protesto veemente quando reatei relações comerciais com a União Soviética, China e Cuba. Eu queria ter visto a cara dele quando descobriu que também condecorei o Che Guevara. Por aqui também não pegou bem a condecoração, meus ministros militares não gostaram nem um pouco.
Acabou o gelo, servi uma dose caubói, dei um gole e despachei uma dúzia de bilhetinhos para meus assessores. Implicavam com tudo que eu fazia, reclamavam das proibições das brigas de galo, corridas de cavalo no meio da semana, lança-perfume e biquíni. Reclamavam até da roupa que eu vestia. Diziam que eu devia ter me ocupado com coisas mais importantes. Eles não sabiam o que era uma administração moderna e eficiente.
Dei mais um gole e a bebida desceu proporcionando uma agradável sensação. Até aquele jornalistazinho cretino que foi eleito governador da Guanabara se virou contra mim e veio falar em complô. Precisava dar uma resposta a altura para cortar as asas dele e colocá-lo no seu lugar. Se ele pensava que ia fazer comigo o que fez com o Getulio estava muito enganado. Decidi fazer um pronunciamento à nação pra mostrar com quem ele estava se metendo.
Reabasteci o copo e me preparei pra escrever o manifesto. Tinha que ser algo firme e contundente, algo que calasse a boca dele e mostrasse quem manda no país. Decidi transformar o manifesto numa carta de renúncia. Era isso! Ia dar um susto na nação ameaçando renunciar pra mostrar que eles precisavam mais de mim do que eu deles.
A idéia me empolgou, bebi num só gole e tornei a encher o copo. As palavras se multiplicavam no papel enquanto o copo se esvaziava. Já passava de meia-noite quando terminei a carta e a garrafa. Uma carta que iria sacudir o país. Fiquei cansado, mas satisfeito. Sem condições para ir até meu quarto dormi como estava no sofá do gabinete.
25 de agosto de 1961, seis da manhã — Acordei numa tremenda ressaca com a cabeça pesada e a boca amarga. Encontrei em cima da mesa a carta renúncia ao lado da garrafa vazia. Lembrei-me vagamente do que se passara na noite passada. Meu primeiro impulso foi rasgá-la, mas resolvi ler o que havia escrito. Fiquei sem saber quem eram as tais forças ocultas que mencionei, mas gostei do mistério que dava um toque de realismo ao pedido. Decidi enviar a carta como estava. Coloquei-a num envelope, lacrei-o e deixei-o na mesa da minha secretária com um bilhetinho para encaminhá-lo ao presidente do congresso às dez da manhã. Segui para meus aposentos e mandei Eloá preparar as malas porque íamos viajar.
Onze da manhã – No vôo para casa imaginei o impacto que a carta estaria causando e a cena do presidente do congresso reunido com os ministros militares discutindo meu pedido de renúncia. Eles nunca iriam aceitar e entregar o país para o meu vice. Ruim comigo, pior com ele e eles sabiam disso. Já instalado em meu apartamento em São Paulo aguardei a ligação de Brasília me implorando para voltar. Eu iria sair fortalecido daquela crise e imporia minhas condições. Eles não perdiam por esperar.
Três da tarde — O telefone tocou e fui comunicado que minha renúncia fora aceita e que eu já não era mais o Presidente da República. Meu governo durara apenas sete meses. O tiro havia saído pela culatra. Abri uma garrafa e bebi pra esquecer.

Entrevista com Cristo Redentor


Regina Paranhos & Fabio Bastos

Entrevista concedida para a repórter Regina Paranhos pela estátua do Cristo Redentor após ter sido escolhido uma das 7 maravilhas do mundo moderno.

RP - Como devo lhe tratar? Senhor, por ser o Cristo Redentor ou senhora, por ser estátua?
CR – Você deve me tratar de senhor e com todo o respeito porque agora que eu sou uma celebridade; sou uma das 7 maravilhas do mundo moderno. E vamos acabar com essa história de estátua porque eu sou um MO NU MEN TO. Estátuas são aquelas que ficam em praças públicas servindo de banheiro pra pombos.

RP — Como e quando o senhor subiu aí em cima do Corcovado?
CR — Já faz tempo que estou aqui. Eu fui concebido por um engenheiro brasileiro lá pelos idos de 1920. Minha construção ficou a cargo de um francês e demorou uns cinco anos pra terminar. Fui inaugurado em 1931 e minhas luzes acesas pelo cientista italiano Marconi diretamente de Nápoles. Pode-se dizer que sou um monumento multinacional. Peso mais de 1000 toneladas bem distribuídas nos meus 30 metros de altura.

RP — É dura a vida de estátua? Essa posição, braços abertos sobre a Guanabara, não cansa?
CR — Essa posição, imortalizada em música do Tom Jobim, é símbolo da cidade e eu tenho que manter de qualquer maneira. São os ossos do ofício, mas eu já estou acostumado. Apesar da minha idade, eu sou duro como uma rocha.

RP — O senhor faz uso de desodorante?
CR — Nunca usei e até hoje ninguém reclamou. O pessoal daqui de baixo do Jardim Botânico até criou um bloco em homenagem ao meu sovaco.

RP — Como é a vista aí de cima?
CR — Eu não me canso de apreciar essa paisagem maravilhosa, não há nada igual no mundo. Nesse tempo que estou aqui assisti muita coisa. Vi construírem a ponte Rio - Niterói, o Maracanã, o Aterro do Flamengo. É bem verdade que vi também algumas coisas ruins como a favelização da cidade. Gosto também de ver turistas chegarem aqui em cima esbaforidos e tirarem fotos de mim. Quando não tem ninguém é chato e pra passar o tempo eu fico contando barcos na baía de Guanabara e as viagens do bondinho do Pão de Açúcar.

RP — É verdade que a sua eleição como uma das sete maravilhas do mundo foi marmelada?
CR — Isso é choro de perdedor, de invejosos. Se você quer saber, eu acho até que fui prejudicado e merecia uma colocação melhor. Perder para a Muralha da China ainda vai, mas ficar atrás de uma cidade de pedra que ninguém nunca ouviu falar é dose. Eu sei que a Estátua da Liberdade foi uma que reclamou, mas, coitada, ela está caidinha, virou até garota propaganda de um shopping na Barra da Tijuca.

RP — Após a eleição, quais são seus planos?
CR — Eu gostaria que fizessem um pedestal rotatório para que eu possa girar e ver toda a cidade. Estou há mais de 70 anos na mesma posição e acordando todo dia com o sol na cara. E tem mais uma coisa, daqui pra frente eu quero ser conhecido como o Monumento do Cristo Maravilha.

Dos quintos do inferno

A chegada do ACM às profundezas do inferno foi apoteótica. Recebido pelo próprio Satanás e ovacionado por centenas de admiradores, e até mesmo por alguns desafetos, foi carregado nos ombros para o auditório local para fazer uma palestra sobre a política brasileira atual. Estavam todos ávidos por notícias frescas do outro mundo. Tão grande foi o interesse que o salão logo ficou lotado, com gente em pé pelos cantos e sentada no chão. ACM tomou lugar na tribuna e se preparou para proferir seu primeiro discurso dos quintos do inferno.
− Senhores e senhoras, caros colegas, correligionários e ilustríssimo doutor Satanás. Agradeço de coração a calorosa recepção que vocês me proporcionaram, mas deve estar havendo algum engano. Eu não pertenço a esse lugar, apesar de não ter nada contra os que aqui estão. Pelo muito que fiz em prol do povo brasileiro eu deveria estar lá em cima, num lugar de honra ao lado do Todo-Poderoso.
Gargalhada geral na platéia e alguém respondeu ao palestrante
− Logo você, o Toninho Malvadeza. Você é o nosso ídolo e estamos te aguardando aqui embaixo há muito tempo. Lá em cima não é lugar pra político brasileiro, muito menos pra Vossa Excelência.
A resposta arrancou risos e aplausos da platéia. Experiente, ACM esperou as palmas sossegarem e passou direto para o assunto da palestra.
− Vocês não têm idéia do que se passa no Brasil do século 21. A corrupção e roubalheira atingiram níveis inimagináveis. Está em todo lugar, na iniciativa privada, no congresso e nos governos federal, estadual e municipal. Nunca houve nada parecido, eu estou estarrecido. E olhem que eu conheço bem o assunto.
Nova onda de gargalhadas e palmas. ACM esperou mais uma vez o auditório se acalmar − A bandalheira tomou conta do país e os três poderes estão desmoralizados. Chegamos finalmente ao fundo do poço − concluiu de maneira enfática e fez uma pausa para observar a reação da platéia.
Geisel foi o primeiro a se manifestar
− Eu avisei pro João Batista que era cedo para a tal abertura, mas ele não me ouviu e deu no que deu.
Todos olharam para o Figueiredo que deu uma resposta lacônica.
− Não tenho nada a ver com isso. Eu já pedi pra vocês me esquecerem.
Tancredo saiu em defesa da abertura política.
− Se eu não tivesse morrido tudo seria diferente. A culpa foi do Ribamar que não teve pulso para reconduzir o país para a democracia. Assim que ele chegar aqui eu vou dizer isso pra ele.
Mario Covas interveio para botar ordem na casa
− Vocês não vão começar de novo com essa lengalenga porque ninguém agüenta mais. Esse assunto é passado e já morreu, como todos aqui. Vamos voltar a ouvir o nobre colega que acabou de chegar.
Aproveitando o momento de pausa, Lacerda levantou o braço e perguntou.
− O que vocês da oposição estão fazendo pra derrubar o governo? No meu tempo esse operário barbudo não teria se criado. Por muito menos eu fiz um presidente meter uma bala na cabeça.
— No peito — retrucou Getúlio sentado entre Jango e Brizola.
Antes que a discussão se alongasse, ACM retomou a palavra.
− Estimado governador Lacerda, folgo em revê-lo depois de tanto tempo. Não existe oposição, estão todos comprometidos e com o rabo preso com o governo. Sozinho eu não pude fazer nada, se ao menos o Luis Eduardo estivesse lá comigo. Mas com o apoio de vocês podemos fazer uma frente ampla e arquitetar o impeachment do presidente.
Novas gargalhadas e ACM notou que tinha falado besteira. Ulysses com sua voz cavernosa saiu em socorro do velho amigo.
− Meu caro Toninho, você ainda não entendeu a situação. Nós não podemos fazer mais nada, somos cartas fora do baralho, perdemos totalmente o poder. Eu sei que no início é difícil aceitar a idéia, mas com o tempo você se acostuma. Agora nós somos almas do outro mundo e a única coisa que podemos fazer é assombrar uns pobres coitados por aí. Outro dia mesmo um grupo saiu daqui pra assistir a abertura do Pan e puxou umas vaias no Maracanã.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Amor sincopado

Não era a famosa garota, mas tinha o mesmo doce balanço e corpo dourado.
Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...
Assim que a vi passar meu coração bateu mais forte.
Meu coração... bate feliz... quando te vê...
Como era de se esperar ela tinha alguém.
Laranja madura na beira da estrada está bichada Zé, ou tem marimbondo no pé...
Esse alguém era meu amigo!
Estou amando loucamente a namoradinha de um amigo meu...
Tentei esquecê-la, mas não consegui.
Esqueci de tentar te esquecer...
Resolvi ir à luta e procurá-la.
Resolvi te querer por querer...
O encontro aconteceu.
Esse seu olhar, quando encontra o meu...
Apelei para Vinícius.
Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar...
Fiz o pedido.
Se você quer ser minha namorada, ai que linda namorada você poderia ser...
Pela primeira vez na vida me vi apaixonado.
Eu que sempre fui tão inconstante, te juro meu amor, agora é pra valer...
Pra valer, mas nem tanto. Brigamos e voltamos algumas vezes
Começar de novo, e contar comigo...
Aprontei muito com ela.
Tantas você fez que ela cansou, porque você rapaz...
Ela também aprontou comigo.
Igualzinha a você, eu não presto, eu não presto...
Nosso caso chegou ao fim e cada um seguiu seu caminho.
Hoje eu saio na noite vazia, numa boemia sem razão de ser...
Ela virou uma doce lembrança.
Das lembranças que eu tenho na vida, você é a saudade que eu gosto de ter...
Saudade! Foi tudo que restou.
E por falar em saudade... Onde anda você?

Meu Brasil brasileiro

— Por onde o dotô quer ir?
— Pela Niemeyer. Prefiro uma bala perdida do Vidigal que da Rocinha.
— A coisa tá feia mesmo. Outro dia o chefão da polícia foi se meter lá no Alemão e mandaram chumbo em cima dele. O dotô precisava ver a cara de assustado que ele fez.
— Foi bom pra ele sentir na pele o que está acontecendo na cidade. Estamos no meio de uma guerra civil e o governo diz que está tudo sob controle.
— O dotô conhece a tal de Suíça?
— Por que você está perguntando isso?
— Porque o Lula diz que lá ninguém fala mal do governo. Que tá todo mundo satisfeito.
— É porque lá os políticos são honestos. O presidente do senado não tem uma amante e uma filha sustentadas por uma empreiteira.
— Sendo político fica fácil, não é mesmo dotô? Eu queria ver ele ter duas famílias sendo taxista.
— É por essas e outras que a gente reclama. O pior é que não adianta nada, eles estão roubando cada vez mais e ninguém vai preso.
— Diz que no Japão quando um político é pego roubando ele se suicida.
— É verdade, mas lá é outra cultura. Se essa moda pega aqui eles iam arranjar alguém para se suicidar por eles. Iam terceirizar o suicídio.
— Mas aqui teve o Getúlio que se suicidou.
— Isso foi há mais de cinqüenta anos. Hoje eles perderam a vergonha na cara. São pegos com a mão na massa e negam tudo, inventam as maiores mentiras. Não dá mais pra acreditar em ninguém. Até o irmão do Lula está envolvido em maracutaia.
— O Lula chamou o irmão de lambari e disse que ele não fez nada de errado. Diz que ele é bobo.
— E você acredita nisso? Acha mesmo que ele é bobo?
— Bobo sou eu, dotô, que ralo o dia inteiro em cima desse táxi pra ganhar uma merreca. Tem dia que não dá nem pra pagar a diária.
— Enquanto isso lá em Brasília a roubalheira corre solta.
— A culpa disso tudo é do Lula. O negócio dele é festa, ele nunca tá aqui, tá sempre viajando. Um dia tá no jogo do Brasil na Inglaterra, outro tá na Índia e por aí afora. Ele só não fica em Brasília. O dotô sabe como que é, quando o gato não tá em casa, os ratos fazem a festa...
— Você queria o quê? O Lula nunca foi de trabalho, sempre viveu encostado em sindicatos e partidos políticos. E o curioso é que ele é o símbolo do partido dos trabalhadores. Mas ele agrada ao povão porque foi reeleito. Você é um que deve ter votado nele.
— Votei mesmo. É que ele fala a língua da gente e diz que as coisas vão melhorar.
— E melhora alguma coisa? Só se for pro lambari.
— Fazer o que, né dotô? Agora, como diz a ministra, relaxa e goza.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Turismo de cabelos brancos

Embarquei numa excursão de ônibus para as cidades históricas de Minas consciente de que estava embarcando também na terceira idade. Sempre gostei de viajar por conta própria. Em carros alugados e com um mapa na mão desbravei estradas desconhecidas por esse mundo afora. É verdade que me perdi algumas vezes e passei alguns sufocos, mas no fim das viagens esses contratempos se tornavam agradáveis recordações. Dessa vez foi diferente, por insistência de minha mulher, entramos numa excursão com tudo previamente organizado: hotéis, horários e itinerários.
Dentro do ônibus uma nuvem de cabelos brancos pairava por cima das poltronas. Me senti jovem no esplendor dos meus 60 anos. Depois da cerimônia de apresentações e de um lanchinho servido pelas solícitas guias seguimos quietos até a primeira parada — Quinze minutos para vocês esticarem as pernas e irem ao banheiro. Somente para o número um, deixem o número dois para o hotel. Aproveitem para trocar os fraldões geriátricos — ordenou uma delas com firmeza.
Obediente que sou, preparei-me para saltar do ônibus, mas não foi fácil. Um senhor com dificuldade para se locomover desceu apoiado numa bengala provocando enorme congestionamento atrás dele. Perdemos preciosos minutos e pensei em reivindicar uma prorrogação, mas desisti. Assim que consegui sair fui ao banheiro e mijei mesmo sem vontade para não ser tachado de rebelde; uma senhora já havia me chamado a atenção ao me ver sem crachá. De volta ao ônibus peguei um cigarro e levei-o à boca. Fui fuzilado por dezenas de olhares recriminadores, inclusive o da minha mulher. Em sinal de protesto decidi manter o cigarro apagado na boca.
Tumulto na chegada a Tiradentes, nosso primeiro pouso. Um ônibus com turistas franceses chegou junto com o nosso, provocando enorme confusão de malas e pessoas na portaria do hotel. Depois de muitas reclamações e bagagens trocadas saímos em grupo para conhecer a cidade. Ciceroneados por um guia local o cortejo seguiu a pé pelas pitorescas ruas e ladeiras de paralelepípedo. Um bando de tartarugas mancas teria ido mais rápido.
De volta ao hotel nossa guia sargentona informou a programação para a noite e dia seguinte — Hoje vocês têm noite livre para experimentarem a culinária mineira e fazerem comprinhas no comércio local. Amanhã alvorada às seis e meia. Malas na porta do quarto e todos no restaurante as sete em ponto para tomarmos o café da manhã — com os números um e dois já resolvidos, ela pensou, mas não disse.
Brilhante plano, não fosse também o dos franceses. O resultado foi novo tumulto internacional na manhã seguinte. Oitenta pessoas se digladiando ao redor da mesa do bufê por um pedaço de pão, um bolinho de fubá e uma xícara de café com leite. O pão de queijo nem chegava à mesa, o garçom era assaltado no caminho e voltava para a cozinha com a bandeja vazia. Com sacrifício consegui uma xícara de café e um pedaço de queijo de minas que surrupiei do prato de uma francesa distraída. Atrasados e mal alimentados seguimos em frente.
O resto da viagem foi uma sucessão de entra e sai de ônibus e igrejas, alvoradas com o galo cantando, malas na porta com hora marcada e caminhadas a passo de cágado. Num dos hotéis uma senhora afobada despachou a mala antes de tirar a roupa que ia vestir. Passou o dia de roupão até chegarmos no hotel seguinte. E tome de comida mineira e compras de lembrançinhas inúteis. Levei mais dois cartões amarelos da fiscal de crachá. Houve troca de remédios e receitas culinárias. Ouvi relatos detalhados de cirurgias, com direito a exibição de cicatrizes. Tirei muitas fotos com o grupo na porta de igrejas e vi dezenas de retratos de filhos, netos e bisnetos. Na viagem de volta tivemos jogos, sorteio de brindes, amigo oculto e karaokê a bordo. Fomos obrigados a fazer duas paradas não programadas por conta dos abusos da culinária mineira. A guia anunciou que breve haverá nova excursão, provavelmente com o mesmo roteiro. Graças ao Alzheimer em uma semana todos já terão esquecido o que viram. Solicitado a preencher nome, endereço e telefone numa lista, informei tudo errado.
Sorria, você está na Barra! Nunca fiquei tão contente em voltar para casa. Prometendo participar em outras excursões do grupo me despedi e desembarquei do ônibus e da terceira idade.

Santo de casa também faz milagre

— Ô garçom, traz mais uma rodada de chope pra gente fazer um brinde ao primeiro santo brasileiro.
— Santo brasileiro? Isso não existe! É folclore igual ao saci pererê e a mula-sem-cabeça.
— Não existia, meu caro, mas agora existe. O papa acabou de canonizar Frei Galvão, o nosso santo tupiniquim. Habemus santum! Entramos no primeiro mundo.
— Você quer dizer que um papa nazista canonizou um santo brasileiro? Esse mundo está mesmo perdido. O que foi que esse Frei Galvão fez pra virar santo?
— Milagres. Para uma pessoa virar santo tem que fazer milagres.
— E qual foi o milagre que ele fez? Foi ele que salvou o Flamengo de ser rebaixado no brasileirão de 2005?
— Não, ele inventou as pílulas milagrosas.
— Ah bom! Se ele inventou o viagra, merece ser santo.
— Que viagra que nada. Ele inventou umas pílulas recheadas com jaculatórias.
— Jaculatórias! Argh! Que nojo!
— Quanta ignorância, quanta falta de cultura! Não é nada disso que você está pensando; jaculatórias são orações curtas. As pílulas têm um papelzinho dentro com as orações do frei e curam os doentes.
— Curam mesmo ou isso é mais uma armação da igreja? Eu não confio nesses padrecos. Outro dia mesmo teve um que roubou umas gravatas lá nos Estados Unidos e foi em cana.
— Não era padre, era rabino. Mas isso não tem nada que ver com Frei Galvão. Os milagres deles foram estudados por especialistas e comprovados cientificamente.
— Eu queria ver ele fazer um milagre e meter na cadeia esses juízes e políticos corruptos.
— Aí já é pedir demais. Essa nem Jesus Cristo consegue.
— E como é que a gente faz pra arranjar uns milagres com esse santo?
— É só você tomar as pílulas dele.
— Aquelas com jaculatórias? Tô fora, prefiro ficar sem os milagres.
— Larga de ser burro, ô cara, eu já disse que jaculatórias são orações.
— Com tantos Valérios, Delubios, Malufes e Euricos a solta por aí, estava mesmo na hora de aparecerem uns santos pra contrabalançar.
— Frei Galvão foi o primeiro, tem outros na fila.
— O Lula é um candidato. Mesmo com toda aquela roubalheira e escândalos em Brasília ele foi reeleito com mais de 50 milhões de votos. Vai dizer que não foi milagre?
— Pode ser. Só que o Lula não quer ser santo. Ele já se acha Deus.
—Tim! Tim! Viva São Frei Galvão!

Dura lex sed lex

Como dever de casa a professora mandou seus alunos lerem as principais notícias do jornal e prepararem dúvidas e comentários. Eles precisam saber o que se passa no país e no mundo. Na aula seguinte as perguntas pipocavam de todos os lados como balas perdidas.
— Professora, não é a polícia que tem que perseguir os bandidos?
— É. Por que você está perguntando isso?
— Porque o jornal diz que os bandidos é que estão perseguindo a polícia.
É a nossa triste realidade, mas não posso admitir isso para os alunos. Nós educadores temos o dever de manter a fé dos jovens nas instituições.
— Deve ter sido um truque da polícia pra armar uma cilada e prender os bandidos.
— Professora, se o jogo do bicho é proibido, por que a polícia não prende aquele homem que fica lá em frente à padaria? Ele fica sentado numa cadeira na calçada recebendo apostas no jogo do bicho.
— Vai ver que a polícia não sabe o que ele está fazendo.
Será que ele vai engolir essa?
— Se não sabe é muito otária, todo mundo sabe que ali é o ponto do bicho. A minha empregada vai todo dia lá fazer uma fezinha com ele.
Não engoliu.
— É uma questão social, ele não tem emprego e com o jogo do bicho ele ganha um dinheirinho pra levar pra casa.
— Professora, por que os juízes receberam dinheiro dos bicheiros?
— Foram só alguns juízes corruptos, mas eles já foram presos.
— Eles foram presos, mas logo depois foram soltos.
Alguém já disse que o Brasil não é um país sério.
— Eles vão ser julgados e se forem condenados vão ser presos de novo.
— Mas se eles forem julgados por outros juízes eles não vão ser condenados.
— Vão sim, a justiça vai ser feita.
Assim espero!
— Professora, por que os juízes foram soltos e os bicheiros ficaram presos?
— Os juízes foram soltos por que têm privilégios. Eles vão esperar o julgamento em liberdade.
— Por que eles têm privilégios e os bicheiros não? A senhora não explicou que a lei é igual pra todo mundo?
Esses garotos não são fáceis, estão me deixando na maior saia justa.
— Porque existe uma lei que diz que as pessoas que estudam e têm curso superior têm privilégios. É para incentivar as pessoas a estudarem.
— Quer dizer que tem uma lei pra quem estudou e é rico e outra pra quem é analfabeto e pobre?
A minha vontade é dizer que é isso mesmo, mas não posso.
— Nada disso. As leis são as mesmas para todos, mas têm particularidades.
— Professora, quem é que faz as leis? São os juízes?
— Não, os juízes julgam as pessoas baseados nas leis que são feitas pelos políticos do poder Legislativo. As leis são feitas para defender os interesses do povo.
— Mas os políticos não são corruptos? Não foram eles que receberam dinheiro do mensalão.
Quem mandou ser professora?E ainda mais pra ganhar uma merreca.
— Nem todo político é corrupto. Os que receberam dinheiro do mensalão foram cassados e estão respondendo processos criminais.
— Nem todos, professora, muitos foram absolvidos e saíram rindo. Teve uma deputada que até dançou de alegria. Eu vi na televisão.
Está cada vez mais difícil preservar a honra das nossas instituições. Ainda bem que falta pouco tempo para eu me aposentar.

terça-feira, 1 de maio de 2007

De alquimista a cronista

Nascido e criado num Rio de Janeiro que não existe mais. A infância e a adolescência passou entre a educação num colégio jesuíta e o lazer com colegas. Peladeiro convicto atuou tanto nas areias da praia como nas ruas e campos de futebol soçaite. Se talento lhe faltava, disposição tinha de sobra. Sofreu e sorriu com o seu Flamengo e assistiu ao milésimo gol do Pelé no Maracanã. Influenciado pelo pai, um pioneiro em caça submarina no Brasil, tomou gosto pelo mundo submarino. Não foi surfista, na sua época só se pegava jacaré. Andou de bonde e lotação até ter seu primeiro carro. Namorou e dançou ao som dos acordes da bossa nova e das guitarras dos Beatles. Casou-se com uma legítima garota de Ipanema, casamento que perdura até hoje e que gerou três lindas filhas.
Na hora de escolher uma profissão se aventurou pelos mistérios da alquimia. Seu primeiro emprego foi numa fábrica onde ficou muitos anos. Aos 40 deu uma guinada na carreira, trocou a área industrial pela comercial. Viajou por esse Brasil e pelo mundo afora, ampliou seus horizontes. Participou de reuniões, congressos ou simplesmente viajou de férias. Conheceu muitos lugares, fez novas amizades e colecionou momentos que se transformaram em doces recordações.
Em determinado momento as viagens de trabalho, a princípio prazerosas, se tornaram enfadonhas. Passava longas e solitárias horas em hotéis, aeroportos e aviões. Precisava arranjar algo para se distrair e não se tornar mais um alcoólatra em trânsito, como tantos que conheceu em suas andanças pelo mundo. Descobriu que escrever passava o tempo e encontrou a distração que procurava.
No início foram memórias, transferia para o papel momentos de sua existência. Numa segunda etapa vieram as crônicas, comentava e dava opinião sobre notícias da época. Resolveu ir além e, baseado num fato real e na sua imaginação, escreveu um conto. Foi o primeiro de muitos perpetuados mais tarde em livros. Tomou gosto pela arte de escrever e se viciou. Para se aperfeiçoar voltou a ler seus autores prediletos e freqüentou cursos e oficinas literárias onde aprendeu e fez preciosas amizades.
Sessentão e aposentado dedica-se aos netos, que para sua alegria não param de chegar a esse mundo. Pode ser encontrado pela manhã pedalando na ciclovia da Barra e à noite em mesas de pôquer e sinuca. Nas horas vagas entrega-se ao vício de escrever.

Viagem pelo mundo lexical

Li no jornal que um número expressivo de brasileiros sabe ler, mas não sabe interpretar o que lê. Entendem o significado de algumas palavras e frases curtas, mas não de um texto um pouco mais longo e complexo. São semi-analfabetos. Fechei o jornal e os olhos e embarquei numa viagem pelo mundo lexical.
A primeira idéia que me ocorreu foi que uma palavra isolada perde sua força. É como um soldado no campo de batalha que precisa do apoio de seus companheiros para lutar e sobreviver. Cada palavra-soldado tem sua função específica na tropa lingüística, seja substantivo, adjetivo, verbo, pronome ou outra especialidade. Elas se completam e formam frases, que alinhadas compõe parágrafos que dão vida ao texto.
Uma língua seria então um repertório destas palavras e cada idioma teria o seu. Sob esse aspecto traduzir seria uma tarefa fácil, bastaria substituir palavras de um idioma para o outro e montar frases. É o que fazem os programas de tradução instantânea com resultados desastrosos. Traduzir é mais do que substituir palavras, é transformar, adaptar, improvisar. Traduttore, traditore, diz o ditado italiano. Traduzir é trair no sentido que o texto traduzido é infiel ao original.
Todo língua possui suas características, peculiaridades e ambigüidades. Em português dizemos que vamos botar a calça e calçar a bota, quando mais lógico seria calçarmos a calça e botarmos a bota. Em idiomas diferentes as palavras nem sempre significam o que aparentam. Num país de língua inglesa ao se deparar com uma placa de PUSH numa porta, não puxe, empurre; se for PULL, não pule, puxe, e no caso de EXIT, não hesite, saia. A palavra saia, que acabei de usar é outro exemplo, isolada e fora do contexto não se sabe se é a peça do vestuário feminino ou o tempo verbal.
A informática, o economês, a internet e outras áreas tecnológicas estão sempre lançando palavras novas na mídia. Software, marketing e performance são exemplos de algumas já aceitas e incorporadas ao nosso vernáculo. Outras, como deletar, estresse, know how e impeachment, ainda estão sendo digeridas. Difíceis de engolir são as aportuguesadas fidebeque, leiaute e estartar. É a globalização introduzindo uma nova língua universal para facilitar a comunicação entre os povos, o que o esperanto tentou, mas não conseguiu.
Nesse ponto da viagem compreendi melhor as dificuldades dos semi-analfabetos tendo que conviver com todos esses neologismos e percalços lingüísticos. Abri os olhos e retomei a leitura do jornal.

O que é de gosto regala a vida

Alfredo passou mal no escritório chegando a desmaiar. Chamada às pressas para atendê-lo, sua filha única, médica, já o encontrou bem disposto e trabalhando normalmente — Foi uma bobagem, um mal estar passageiro — disse ele enquanto ela tirava sua pressão.
No dia seguinte ela o levou, sob protestos, para fazer um check-up no hospital em que trabalhava. Os resultados dos exames não acusaram nada de anormal — É excesso de trabalho, papai. Você precisa se distrair mais, relaxar, curtir a vida. Há quanto tempo você não tira umas férias?
Alfredo não respondeu, não teve coragem. As últimas férias haviam sido quando a levou para a Disney no seu aniversário de dez anos. Sabia que a filha tinha razão, ele se sentia mesmo estafado, mas relutava em se afastar do trabalho.
Na saída do hospital avistaram um outdoor de uma agência de turismo com a frase - Não leve tão a sério a sua existência. Você não vai sair dela com vida.
— Papai, essa frase foi feita sob medida pra você que vai acabar se matando de tanto trabalhar. Vai passar pela vida sem viver. Por que você e a mamãe não viajam para a Europa numa excursão? Aposto que vocês iriam adorar.
A frase e os argumentos da filha foram decisivos para ele tomar a decisão — Tudo bem, minha filha, eu tiro umas férias, mas nem pensar em Europa e viajar de avião. Eu vou é para São Lourenço e de carro.
— São Lourenço! Que falta de imaginação! Mas pensando bem é até melhor. Lá pelo menos você vai descansar e se alimentar bem.
No domingo Alfredo e a mulher seguiram para uma semana de férias em São Lourenço. Hospedaram-se no Hotel Brasil, o mesmo da lua de mel há trinta anos. O tempo havia passado e o hotel se modernizado, mas o programa era o mesmo. Manhã no parque das águas sulfurosas e magnesianas, foto no caramanchão do lago, miolo de pão para pombos e patos, pedalinho, charrete e um bom livro para ler.
Almoço seguido de cochilo na espreguiçadeira. À tardinha passeio a pé pelo comércio para comprar lembranças e bugigangas. Uma partida de biriba antes do jantar e depois cafezinho e chá na varanda. Os homens discutem política e futebol enquanto as mulheres assistem à novela na sala de televisão. Pouca coisa mudou dos tempos da lua de mel, só os momentos embaixo dos lençóis que não eram mais os mesmos.
O primeiro dia foi interessante, o segundo entediante e o terceiro angustiante. Alfredo sentia-se um inútil longe de seus relatórios, planilhas e contratos. A sensação era de um viciado tentando largar a droga. Pensou em ligar para o escritório e saber das novidades, mas conteve-se, estava ali para curtir as férias como havia prometido para a filha. Passou o resto da semana amargurado esperando pelo domingo.
Na segunda-feira voltou ansioso ao escritório. Deu um bom dia seco para os colegas, trancou-se na sala e mergulhou de cabeça na papelada. Não parou nem para almoçar. Como sempre foi o último a sair levando na pasta um relatório para terminar em casa. Precisava recuperar a semana perdida. Férias, nunca mais.

Vamos dar um tempo

O namoro começou na adolescência num cursinho de inglês. Naquele tempo não se ficava como nos dias de hoje e para dar uns amassos era preciso namorar. O relacionamento se firmou e prosseguiu durante o tempo de faculdade, ela de medicina e ele de engenharia. Brigas existiram, seguidas de reconciliações que fortaleceram a relação e acabaram por levá-los ao altar. Igreja lotada, recepção suntuosa, lua de mel na Europa e notas em colunas sociais.
Namoro longo, casamento curto. A repentina separação foi uma surpresa para quem os conhecia, na teoria eles formavam o casal perfeito, mas na prática não era bem assim. As desavenças começaram tão logo a poeira das bodas abaixou e a rotina do casamento se instalou. Incompatibilidade de horários; ela saía de um plantão para outro e ele sempre envolvido em viagens de trabalho. Quase nunca se encontravam e quando acontecia tinham objetivos diferentes, ele queria sair para se divertir e ela ficar em casa para colocar o sono em dia. Ele acabava saindo sozinho e a relação foi se deteriorando. Suspeitas, nunca confirmadas, de outra no pedaço.
Resolveram dar um tempo e cada um seguiu seu caminho sem guardar rancores. Ela voltou a se casar e teve dois filhos com um colega de profissão de quem se separou mais tarde. Ele continuou com suas viagens, morou em várias cidades e seus relacionamentos sempre foram passageiros. No início ainda se falavam e trocavam cartões nos aniversários e datas festivas, mas depois nem isso, com o passar do tempo perderam totalmente o contato.
O reencontro foi casual numa festa de casamento da filha de um amigo comum. Emocionados e desacompanhados aproveitaram a oportunidade que o destino lhes reservou. Beberam, comeram, dançaram, riram e conversaram sobre suas vidas depois da separação. Assunto é o que não faltava, tinham trinta anos de histórias para contar. Embalados pela emoção do reencontro e pelas muitas taças de prosecco que tomaram, decidiram terminar a noite no apartamento dele. A brasa da antiga paixão adolescente estava reacesa.
Entraram no apartamento tirando as roupas entre beijos e abraços acalorados. Cada peça que caía no chão revelava uma parte do corpo e trazia doces recordações, jogando mais lenha na fogueira da paixão. Enfim nus, melhor dizendo, novamente nus. O tempo havia sido cruel e deixado marcas na dupla cinqüentona: celulites, varizes, barrigas e carnes flácidas. Detalhes insignificantes e incapazes de apagar o fogaréu que os consumia naquele momento.
A noite foi curta para apaziguar toda aquela paixão e os encontros se repetiram. Eles tinham um passado para resgatar, um presente para aproveitar e, quem sabe, um futuro para compartilhar.

Vem quente que eu estou fervendo

Meu neto de 10 anos me perguntou se o mundo ia acabar por causa do aquecimento global. Respondi que o problema era sério, mas que ele não precisava ficar preocupado porque ninguém ia morrer por causa disso. Ao voltar para casa fui me informar melhor sobre o assunto disposto a lhe dar uma aula completa sobre aquecimento global. Precisava tranqüilizá-lo e manter a fama de vovô-sabe-tudo.
Descobri que os primeiros registros de aumento da temperatura terrestre datam de meados do século 19, ou seja, o problema não é novo, existe há pelo menos 150 anos. A situação se agravou na segunda metade do século passado com a explosão do consumo e a evolução das indústrias petrolífera, automobilística e de outras fontes poluidoras do meio ambiente. As previsões atuais são drásticas, uma elevação de 6 graus na temperatura do planeta e de quase um metro no nível do mar provocarão catástrofes climáticas devastadoras, principalmente na segunda metade do século.
Identifiquei também três formas distintas de encarar o problema. Os alarmistas acham que a situação é gravíssima e sem solução, que o planeta Terra está com os dias contados e a humanidade fadada a desaparecer. Neste grupo estão os ecochatos do Greenpeace preocupados com o futuro de geleiras, focas e pingüins. De outro lado os otimistas dizem que a situação não é tão preta como parece e contestam as previsões científicas. Para eles o aquecimento global tem solução e é preciso haver uma conscientização mundial para que se possa fazer algo. Um último grupo é o dos que não estão nem aí para o assunto. Acham que como as catástrofes só irão ocorrer daqui a dezenas de anos o problema é das próximas gerações. São os egoístas e inconseqüentes.
Razoavelmente informado me alinhei com os otimistas. Não me aprofundei no assunto porque um otimista é antes de tudo um mal informado. Preparei-me então para explicar para uma criança de 10 anos o efeito estufa, buraco de ozônio, gases poluentes, etc. Comecei dizendo que nosso planeta estava doente com febre e precisava se tratar para ficar bom. Ele me interrompeu, pegou na mochila um trabalho que fez para a escola sobre aquecimento global e me entregou. Examinei o material e estava tudo lá, tudo que eu havia preparado para lhe ensinar, até o Protocolo de Kyoto.
— Onde é que você aprendeu tudo isso? — perguntei abismado.
— Eu pesquisei na internet — ele respondeu orgulhoso.
Já não se precisam mais de avôs como antigamente.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Arroz também é gente

— Você viu essa? — diz o marido lendo o jornal — Depois de clones de ovelhas e de outros animais dessa vez inventaram um arroz com DNA humano para produção de vacinas e remédios.
— Como é que é? — pergunta a mulher curiosa.
—Agora o arroz também é gente e vai ter pedigree. A embalagem vai mostrar a data em que ele foi gerado, o local e o nome dos pais, como numa certidão de nascimento.
— E a gente vai comprar no supermercado ou adotar numa maternidade?
— Isso eu não sei, mas vamos ter que carregar com cuidado no colo e quando chegar em casa colocar no berço. Nada de despensa.
— E como é que a gente vai escolher o arroz? Pelo nome de família?
— O arroz vai ser conhecido pelo nome de seus progenitores. Os livros de culinária e os mestres cucas vão indicar o tipo mais adequado para cada refeição. Por exemplo, um arroz à grega vai ter obrigatoriamente descendência grega. Para acompanhar uma feijoada o arroz pode ser um Zeca Pagodinho ou um Romário. Um estrogonofe tem que usar arroz russo. Você já imaginou que delícia deve ser um arroz Sharapova? E de sobremesa um arroz doce Juliana Paes com leite condensado e canela em cima. Só de pensar me dá água na boca.
— Vai fazer sucesso entre os homens, mas não vai agradar ao público feminino. Para nós mulheres o ideal é um risoto preparado com um Leonardo di Caprio, uma paella com um Antonio Banderas ou um arroz de forno com um Rodrigo Santoro.
— A escolha do arroz vai ser importantíssima para não se cometer gafes. Um banquete requer um arroz soltinho e sofisticado, um Gisele Bünchen, que não deve ser nunca usado com um feijão mulatinho qualquer. Já uma boa bacalhoada pede um arroz português, encorpado e denso, um José Saramago. Parboilizado para facilitar a digestão.
— Se inventaram a paternidade para o arroz, será que vão inventar também para outras plantas?
— Com certeza, a política brasileira é pródiga em progenitores. O Alckmin vai dar um chuchu de primeira e o Lula um ótimo pé de cana. O Aécio poderia até gerar uma excelente couve mineira, mas ele tem vocação mesmo é pra arroz de festa.
— E quem vai ser o pai da nossa cannabis?
— O Gabeira, sem sombra de dúvida.

sábado, 14 de abril de 2007

Operação padrão

— O que deu em você para querer sair na sexta-feira? A mocréia da tua mulher morreu?
— Não, mas ela vai viajar e levar o Junior. Estou livre nesse fim de semana.
— A gente vai poder pegar um cineminha e tomar um chope depois, ou você vai querer ir direto pro motel como sempre?
— Bem que eu queria minha querida, mas você sabe que não posso.
— Eu mereço! Mas quem mandou me meter com homem casado? A que horas você me pega na sexta?
— O vôo deles sai as cinco e assim que estiver livre eu te ligo e te pego no trabalho lá pelas seis. A gente vai direto pro motel tomar aquele banho gostoso, um jantarzinho caprichado e depois dormir agarradinho. Sem pressa e nem hora pra terminar.
— Eu só acredito vendo. É melhor não contar com o ovo você sabe onde. Você já me deixou na mão muitas vezes com os teus problemas familiares.
— Dessa vez não tem erro, benzinho. As passagens já estão compradas e eles vão na sexta pro aniversário da minha sogra em Belo Horizonte e só voltam no domingo à noite. Esse fim de semana é todo nosso. Um beijão pra você — ele deu um beijo estalado no celular e desligou.
Na sexta-feira saiu cedo do trabalho, almoçou em casa e antes das quatro estava no aeroporto com a mulher e o filho. Às seis horas ligou do banheiro para a amante.
— Ainda estou aqui no aeroporto, meu amor, isso aqui está uma zona e todos os vôos estão atrasados. Você tem que ter paciência.
— Eu sabia que você ia aprontar mais uma. E ainda caio na tua conversa.
— A culpa não é minha, minha flor, os controladores de vôo estão em operação padrão e está um caos em todos os aeroportos do país. Você pode ver na televisão.
— Você nunca tem culpa de nada, parece até o Lula. O quê que eu tenho a ver com essa operação padrão? Não vou viajar pra lugar nenhum e sobrou pra mim.
— Espera só mais um pouquinho que eu te ligo assim que eles forem. Agora tenho que desligar pra ver se já tem uma previsão de embarque. Um beijão.
Duas horas depois ele ainda está na fila do check-in com a mulher e o filho. O celular toca, ele vê que é ela e não atende.
— Quem era? — a mulher dele quis saber.
--Era o Jorge — ele desconversa — Depois eu ligo pra ele, agora estou ocupado.
— Ocupado com que? Nós estamos em pé aqui nessa droga de fila há mais de três horas sem nada pra fazer. Liga logo pra ele que pode ser alguma coisa importante.
— Agora não, meu bem. Ele fala muito e deve ser uma bobagem qualquer, mais tarde eu ligo. Eu estou aqui pra dar atenção pra vocês — retrucou preocupado.
— Papai, eu quero fazer xixi.
Salvo pelo gongo! Pegou o menino pelo braço e saiu rápido dali. Aproveitou para ligar para a amante do banheiro enquanto se aliviava ao lado do filho.
— Ô Jorge, eu ainda estou aqui no aeroporto com a família e o vôo deles está atrasado. Não precisa me ligar de novo que eu te ligo assim que puder.
— Jorge você sabe quem é. Vou te esperar só mais meia hora, nem mais um minuto, depois disso não precisa ligar mais — ela deu um ultimato.
— Tudo bem, Jorge, eu ligo assim que puder — ele quase se esquece que o garoto está ao lado e manda o tradicional beijão pro “Jorge”. Força do hábito.
Voltou para a fila e para a mulher. A situação continua a mesma, sem previsão de embarque. Alguém comenta que é a tal operação padrão.
— Se é padrão tinha que melhorar e não causar essa zorra toda. Essa esculhambação só acontece no Brasil — ele esbraveja irritado com a passividade geral.
Às nove e meia um funcionário da companhia aérea anunciou que o vôo estava cancelado e eles só iriam embarcar no dia seguinte. Depois de muita gritaria e tumulto no saguão do aeroporto ele não teve outro jeito senão voltar para casa com a mulher e o filho. A noite de sexta estava perdida. Lá pelas dez horas da manhã de sábado conseguiu finalmente despachar os dois e assim que se viu sozinho, ligou para a amante.
— Mil desculpas, meu amor, mas não foi culpa minha. Tentei te ligar ontem à noite, mas o teu celular estava fora de área.
— Estava desligado — ela respondeu seca.
— Eu tenho boas notícias, eles já embarcaram e eu estou livre. Eu posso te pegar a hora que você quiser. Hoje sou todo teu.
— Hoje não vai dar — ela economizava palavras.
— Como é que é? Estou livre, meu bem, e sou todo teu. Eles já estão voando e está tudo certo agora. Podemos passar o dia e a noite juntos.
-- Hoje não vai dar — ela repetiu no mesmo tom de voz.
— Mas por que isso? O que deu em você? — ele perguntou desesperado.
— Nada de fim de semana. Também estou em operação padrão!