quinta-feira, 7 de junho de 2007

Turismo de cabelos brancos

Embarquei numa excursão de ônibus para as cidades históricas de Minas consciente de que estava embarcando também na terceira idade. Sempre gostei de viajar por conta própria. Em carros alugados e com um mapa na mão desbravei estradas desconhecidas por esse mundo afora. É verdade que me perdi algumas vezes e passei alguns sufocos, mas no fim das viagens esses contratempos se tornavam agradáveis recordações. Dessa vez foi diferente, por insistência de minha mulher, entramos numa excursão com tudo previamente organizado: hotéis, horários e itinerários.
Dentro do ônibus uma nuvem de cabelos brancos pairava por cima das poltronas. Me senti jovem no esplendor dos meus 60 anos. Depois da cerimônia de apresentações e de um lanchinho servido pelas solícitas guias seguimos quietos até a primeira parada — Quinze minutos para vocês esticarem as pernas e irem ao banheiro. Somente para o número um, deixem o número dois para o hotel. Aproveitem para trocar os fraldões geriátricos — ordenou uma delas com firmeza.
Obediente que sou, preparei-me para saltar do ônibus, mas não foi fácil. Um senhor com dificuldade para se locomover desceu apoiado numa bengala provocando enorme congestionamento atrás dele. Perdemos preciosos minutos e pensei em reivindicar uma prorrogação, mas desisti. Assim que consegui sair fui ao banheiro e mijei mesmo sem vontade para não ser tachado de rebelde; uma senhora já havia me chamado a atenção ao me ver sem crachá. De volta ao ônibus peguei um cigarro e levei-o à boca. Fui fuzilado por dezenas de olhares recriminadores, inclusive o da minha mulher. Em sinal de protesto decidi manter o cigarro apagado na boca.
Tumulto na chegada a Tiradentes, nosso primeiro pouso. Um ônibus com turistas franceses chegou junto com o nosso, provocando enorme confusão de malas e pessoas na portaria do hotel. Depois de muitas reclamações e bagagens trocadas saímos em grupo para conhecer a cidade. Ciceroneados por um guia local o cortejo seguiu a pé pelas pitorescas ruas e ladeiras de paralelepípedo. Um bando de tartarugas mancas teria ido mais rápido.
De volta ao hotel nossa guia sargentona informou a programação para a noite e dia seguinte — Hoje vocês têm noite livre para experimentarem a culinária mineira e fazerem comprinhas no comércio local. Amanhã alvorada às seis e meia. Malas na porta do quarto e todos no restaurante as sete em ponto para tomarmos o café da manhã — com os números um e dois já resolvidos, ela pensou, mas não disse.
Brilhante plano, não fosse também o dos franceses. O resultado foi novo tumulto internacional na manhã seguinte. Oitenta pessoas se digladiando ao redor da mesa do bufê por um pedaço de pão, um bolinho de fubá e uma xícara de café com leite. O pão de queijo nem chegava à mesa, o garçom era assaltado no caminho e voltava para a cozinha com a bandeja vazia. Com sacrifício consegui uma xícara de café e um pedaço de queijo de minas que surrupiei do prato de uma francesa distraída. Atrasados e mal alimentados seguimos em frente.
O resto da viagem foi uma sucessão de entra e sai de ônibus e igrejas, alvoradas com o galo cantando, malas na porta com hora marcada e caminhadas a passo de cágado. Num dos hotéis uma senhora afobada despachou a mala antes de tirar a roupa que ia vestir. Passou o dia de roupão até chegarmos no hotel seguinte. E tome de comida mineira e compras de lembrançinhas inúteis. Levei mais dois cartões amarelos da fiscal de crachá. Houve troca de remédios e receitas culinárias. Ouvi relatos detalhados de cirurgias, com direito a exibição de cicatrizes. Tirei muitas fotos com o grupo na porta de igrejas e vi dezenas de retratos de filhos, netos e bisnetos. Na viagem de volta tivemos jogos, sorteio de brindes, amigo oculto e karaokê a bordo. Fomos obrigados a fazer duas paradas não programadas por conta dos abusos da culinária mineira. A guia anunciou que breve haverá nova excursão, provavelmente com o mesmo roteiro. Graças ao Alzheimer em uma semana todos já terão esquecido o que viram. Solicitado a preencher nome, endereço e telefone numa lista, informei tudo errado.
Sorria, você está na Barra! Nunca fiquei tão contente em voltar para casa. Prometendo participar em outras excursões do grupo me despedi e desembarquei do ônibus e da terceira idade.

Santo de casa também faz milagre

— Ô garçom, traz mais uma rodada de chope pra gente fazer um brinde ao primeiro santo brasileiro.
— Santo brasileiro? Isso não existe! É folclore igual ao saci pererê e a mula-sem-cabeça.
— Não existia, meu caro, mas agora existe. O papa acabou de canonizar Frei Galvão, o nosso santo tupiniquim. Habemus santum! Entramos no primeiro mundo.
— Você quer dizer que um papa nazista canonizou um santo brasileiro? Esse mundo está mesmo perdido. O que foi que esse Frei Galvão fez pra virar santo?
— Milagres. Para uma pessoa virar santo tem que fazer milagres.
— E qual foi o milagre que ele fez? Foi ele que salvou o Flamengo de ser rebaixado no brasileirão de 2005?
— Não, ele inventou as pílulas milagrosas.
— Ah bom! Se ele inventou o viagra, merece ser santo.
— Que viagra que nada. Ele inventou umas pílulas recheadas com jaculatórias.
— Jaculatórias! Argh! Que nojo!
— Quanta ignorância, quanta falta de cultura! Não é nada disso que você está pensando; jaculatórias são orações curtas. As pílulas têm um papelzinho dentro com as orações do frei e curam os doentes.
— Curam mesmo ou isso é mais uma armação da igreja? Eu não confio nesses padrecos. Outro dia mesmo teve um que roubou umas gravatas lá nos Estados Unidos e foi em cana.
— Não era padre, era rabino. Mas isso não tem nada que ver com Frei Galvão. Os milagres deles foram estudados por especialistas e comprovados cientificamente.
— Eu queria ver ele fazer um milagre e meter na cadeia esses juízes e políticos corruptos.
— Aí já é pedir demais. Essa nem Jesus Cristo consegue.
— E como é que a gente faz pra arranjar uns milagres com esse santo?
— É só você tomar as pílulas dele.
— Aquelas com jaculatórias? Tô fora, prefiro ficar sem os milagres.
— Larga de ser burro, ô cara, eu já disse que jaculatórias são orações.
— Com tantos Valérios, Delubios, Malufes e Euricos a solta por aí, estava mesmo na hora de aparecerem uns santos pra contrabalançar.
— Frei Galvão foi o primeiro, tem outros na fila.
— O Lula é um candidato. Mesmo com toda aquela roubalheira e escândalos em Brasília ele foi reeleito com mais de 50 milhões de votos. Vai dizer que não foi milagre?
— Pode ser. Só que o Lula não quer ser santo. Ele já se acha Deus.
—Tim! Tim! Viva São Frei Galvão!

Dura lex sed lex

Como dever de casa a professora mandou seus alunos lerem as principais notícias do jornal e prepararem dúvidas e comentários. Eles precisam saber o que se passa no país e no mundo. Na aula seguinte as perguntas pipocavam de todos os lados como balas perdidas.
— Professora, não é a polícia que tem que perseguir os bandidos?
— É. Por que você está perguntando isso?
— Porque o jornal diz que os bandidos é que estão perseguindo a polícia.
É a nossa triste realidade, mas não posso admitir isso para os alunos. Nós educadores temos o dever de manter a fé dos jovens nas instituições.
— Deve ter sido um truque da polícia pra armar uma cilada e prender os bandidos.
— Professora, se o jogo do bicho é proibido, por que a polícia não prende aquele homem que fica lá em frente à padaria? Ele fica sentado numa cadeira na calçada recebendo apostas no jogo do bicho.
— Vai ver que a polícia não sabe o que ele está fazendo.
Será que ele vai engolir essa?
— Se não sabe é muito otária, todo mundo sabe que ali é o ponto do bicho. A minha empregada vai todo dia lá fazer uma fezinha com ele.
Não engoliu.
— É uma questão social, ele não tem emprego e com o jogo do bicho ele ganha um dinheirinho pra levar pra casa.
— Professora, por que os juízes receberam dinheiro dos bicheiros?
— Foram só alguns juízes corruptos, mas eles já foram presos.
— Eles foram presos, mas logo depois foram soltos.
Alguém já disse que o Brasil não é um país sério.
— Eles vão ser julgados e se forem condenados vão ser presos de novo.
— Mas se eles forem julgados por outros juízes eles não vão ser condenados.
— Vão sim, a justiça vai ser feita.
Assim espero!
— Professora, por que os juízes foram soltos e os bicheiros ficaram presos?
— Os juízes foram soltos por que têm privilégios. Eles vão esperar o julgamento em liberdade.
— Por que eles têm privilégios e os bicheiros não? A senhora não explicou que a lei é igual pra todo mundo?
Esses garotos não são fáceis, estão me deixando na maior saia justa.
— Porque existe uma lei que diz que as pessoas que estudam e têm curso superior têm privilégios. É para incentivar as pessoas a estudarem.
— Quer dizer que tem uma lei pra quem estudou e é rico e outra pra quem é analfabeto e pobre?
A minha vontade é dizer que é isso mesmo, mas não posso.
— Nada disso. As leis são as mesmas para todos, mas têm particularidades.
— Professora, quem é que faz as leis? São os juízes?
— Não, os juízes julgam as pessoas baseados nas leis que são feitas pelos políticos do poder Legislativo. As leis são feitas para defender os interesses do povo.
— Mas os políticos não são corruptos? Não foram eles que receberam dinheiro do mensalão.
Quem mandou ser professora?E ainda mais pra ganhar uma merreca.
— Nem todo político é corrupto. Os que receberam dinheiro do mensalão foram cassados e estão respondendo processos criminais.
— Nem todos, professora, muitos foram absolvidos e saíram rindo. Teve uma deputada que até dançou de alegria. Eu vi na televisão.
Está cada vez mais difícil preservar a honra das nossas instituições. Ainda bem que falta pouco tempo para eu me aposentar.